SOFRIMENTO RUBRO-NEGRO 2


Há alguns dias atrás lhes contei sobre um inesperado encontro que tive com um grande amigo, flamenguista absolutamente fanático, que, infelizmente, traduzia em seu semblante uma tristeza lamentável, típica de um ser absolutamente desacreditado. Falei-lhes, nessa oportunidade (leiam aqui), que todo o sofrimento por que passava meu grande amigo tinha causa na atual crise do nosso amado Flamengo, clube a que ele tem se dedicado a tentar ajudar com o exercício de tarefas consultivas e voluntárias.

Pois bem. Na sexta-feira última, eu caminhava pelo centro da minha amada cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro quando, por acaso, como obra de um destino saudoso de velhos amigos, encontrei o Fulano - a quem deixo de nominar para preservar-lhe o anonimato entre seus colegas de clube - novamente com expressão de visível desânimo.

De braços abertos, como um Redentor que não se cansa de abraçar a terra amada, fui ao seu encontro, deixando-me revelar um gesto de notória deferência.

— Mas que satisfação enorme te encontrar por aqui de novo, meu querido! — saudei-o efusivamente, na expectativa de que meu festejo o contagiasse e espantasse sua fiel e companheira angústia.

— E aí, Felipe, tudo bem? — respondeu-me, com uma espécie de cumprimento protocolar.

Numa nova investida para sacudir-lhe os ânimos, perguntei em um tom esperançoso:

— E aí, como anda o Flamengo? Será que agora, com essa renovação na diretoria do futebol e as eleições que estão por vir vamos ter alguma coisa boa? Sabe como é, às vezes vontade de trabalhar e novas idéias...

Nesse momento, meu velho cúmplice lançava sobre mim um olhar que me atravessava e parecia repousar na infinda e tênue linha do horizonte.

Já sem a animação que havia açulado a pergunta que acabara de fazer, emendei, agora já contagiado pela sua expressão tristonha:

— Se bem que o atual presidente em exercício, o tal do Delair Dumbrosck, vai concorrer, né? Será que ganha?

Após ouvir minhas indagações, esforçou-se para acordar seu olhar em descanso no horizonte e, com a fronte crispada, fitou-me com uma feição de desalento marcante.

— Meu amigo, eu já não sei quem ganha. Tô quase desistindo. Dizem que nada é tão ruim ao ponto de não poder piorar, não é verdade?

— Pior é que é.

— Pois é. Por isso mesmo que eu tô com medo dele ganhar. Aí a coisa desanda de vez.

— Mas ele é tão ruim assim? — perguntei, surpreso pelo elevado tom de lamentação que carregavam suas palavras.

— Imagina um cara muito burro, uma besta falante, uma obra de um cientista-veterinário que tenha conseguido ensinar uma mula a andar e a falar, imaginou? Pois é, ele é pior! — À essa altura, o velho companheiro deixava de lado seu desânimo e parecia tomado por um furor abrupto, uma raiva colossal.

— Vou te contar uma que você não vai acreditar!

— Conta, conta! — Instiguei ao vê-lo embebido em emoções fortes. A verdade é que já não aguentava mais aquele seu aspecto cabisbaixo. Por mais macabro que possa parecer, me animava vê-lo passional, ainda que movido por sentimentos repugnantes. Via que, pelo menos, um pouco do meu amigo retornava durante aquela conversa. 

— Há algum tempo atrás, no auge da crise financeira do Flamengo, na época em que o Márcio Braga havia dito aquela frase marcante do "acabou o dinheiro", o Delair convocou uma coletiva de imprensa e pediu para que vários funcionários e atletas fossem.  Pra você ter uma idéia, tinha gente ali que não recebia há uns quatro meses. Tava faltando dinheiro pra tudo. Uma porrada de lugares sujos porque os coitados dos funcionários da limpeza não iam trabalhar porque nem dinheiro pra pagar a passagem tinham, dá pra acreditar?

— Que coisa, hein! Mas continua, continua! — eu pedia ansioso por aquela história.

— Então... - aquilo me soou um tanto quanto paulistês, o que me deu calafrios, mas tentei voltar minha atenção para a conversa - Todo mundo que tava lá na coletiva estava esperando o Delair anunciar novas medidas da presidência que iriam dar fôlego pro clube, incentivar todo mundo a trabalhar, enfim, o pessoal tava na expectativa das tais ações que iriam colocar o clube de volta às cabeças.

Houve uma pequena pausa, meu amigo desviou o olhar rapidamente para baixo, deu um pequeno sorriso ignóbil, tomou fôlego, pôs a mão direita sobre meu ombro esquerdo e prosseguiu:

— Nessa hora veio a melhor parte! A imprensa toda olhando pra cara daquele imbecil e ele então começou a defecar pela boca, como faz de costume, só que, dessa vez, em público, pra quem quisesse ouvir. O babaca levantou o dedo, como se fosse fazer uma revelação maravilhosa, e disse que a prioridade do Flamengo naquele momento de crise era pintar os muros da Gávea! Falou que nem precisava de dinheiro pra isso, porque estava numa grande campanha junto à nação rubro-negra para conseguir doações de tinta. Falou que já tinha conseguido 250 galões e vários torcedores voluntários para pintar os muros do clube. Aí, diante da cara-de-babaca coletiva, ele disse que ir trabalhar todos os dias num clube adorado como o Flamengo, com os muros pintados era outra coisa, que tinha certeza que isso iria dar outro ânimo pros atletas e funcionários! E continuou dizendo que contava com a colaboração de todos que estava ali pra que vencessem "mais essa"!

Eu tentava segurar meu riso, diante da tragédia cômica que me era relatava. O meu prezado não chegou a dar espaço para qualquer comentário e continuou o desabafo:

— Agora veja você, todo mundo sem receber, puto da vida com os salários atrasados, gente que não tinha dinheiro nem pro ônibus, o Flamengo numa crise financeira de dar dó, devendo mais de 350 milhões de reais, juros pra cacete nos cornos, numa fase horrorosa no futebol e em vários outros esportes e o cara vem dizer que a prioridade dele era pintar os muros do clube?! Só pode estar de sacanagem com os torcedores e, pior, com os funcionários, né? Mas você não sabe da pior...

— Tem mais? retruquei numa incredulidade desafiadora.

— Ah, se tem! Depois desse fiasco aí de pintar a Gávea, foram descobrir que os muros estavam todos cheios de infiltrações. O resultado foi que depois de já terem pintado os muros, tiveram que pagar a uma construtora para resolver o problema das infiltrações e, depois, pintar de novo. Agora, passa lá na Gávea e observa só. A cara-de-pau é tamanha que o imbecil só pintou os muros que estão virados pras avenidas. Os outros continuam caindo aos pedaços. E o pessoal sem receber... Dá é raiva!

Sem saber o que dizer ao amigo enfurecido, olhei o relógio e, como se tivesse acabado de lembrar de um compromisso inadiável, pus repentinamente a mão sobre a testa dizendo estar atrasado para uma reunião. Despedi-me e desejei dias melhores ao pobre-diabo.

Caminhava pela rua e continuava a pensar sobre a sucessão de bestialidades cometidas pela administração do Flamengo. Sacudi a cabeça espantando os pensamentos, pois, como vocês sabem, meus queridos leitores, poderia ser muito pior. Com esse talento todo para estupidez e imbecilidade, o Delair, na atual conjuntura, poderia até ser prefeito do Rio de Janeiro. Mas essa é uma história para nosso próximo encontro.

Até a próxima.
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