BAIANO TIPO BAIXO DA PROFANAÇÃO


A primeira história a ser contada neste blog que acaba de ser inaugurado é sobre a minha infância e adolescência. Mais precisamente, sobre um sujeito que foi - e, saudosamente, ainda é - importantíssimo na minha vida, o Tio Juarez, ou, como os amigos lhe chamavam, o Juju.

Eu não me lembro muito bem quando foi que passei a ter uma relação tão fraternal com o Juju, provavelmente porque eu era muito novo. Mas me recordo com muita intensidade dos momentos memoráveis que faço questão de compartilhar com vocês, meus queridos leitores (me soou pernóstico começar a escrever agora e já presumir que tenho não apenas leitor, mas leitores).

Eu era muitíssimo jovem quando meu pai, médico radiologista de invejável competência, teve em sua frente um dedo em riste e um comentário debochado sobre seu futuro como profissional. Um sujeito - que não vem ao caso nomear-lhe - sentava-se à sua frente e ria, perguntando, com notório tom de descrédito e ironia, se meu velho pai iria ser um empresário, se iria tentar montar sua própria clínica.

Eu não entendia quase nada da vida. Era novo demais para compreender as amarguras e decepções pelas quais um ser humano digno muitas vezes tem de passar, apesar de todos os seus esforços para viver de maneira honrosa. Mas, muito embora tivesse muito pouca idade, era impossível não compreender, não sentir em meu coração, a tristeza e a desolação estampadas no olhar choroso e solitário do meu pai.

Chegou em casa sorumbático, como se tivessem dele arrancado um pedaço essencial. Buscava conselho em minha mãe, mulher de coração e perseverança enormes, embora tente, muito frequentemente e sem êxito, suportar friamente as dores da vida. Me lembro que, naquele dia, seu olhar não se encontrava ao meu. Parecia que não queria que eu percebesse sua dor, que descobrisse que meu pai, meu herói, também tinha fraquezas.

Seus olhos úmidos pareciam se perguntar o porquê de ter de passar por aquele sofrimento apenas por ser ético. Foi naquele dia que, sem eu saber, meu velho me dava uma lição das mais importantes: ficava claro que meu pai pagava o preço da ética, da dignidade, da moralidade, da honestidade para com o próximo. Nos dias de hoje talvez a notícia não seja tão impactante, mas meu pai era alvo do escárnio alheio porque não suportava e não permitia que seus pacientes fossem enganados ou tratados sem a devida honestidade.

Sem chão, meu velho encontrou apoio nos familiares e pessoas amadas para que tentasse montar sua própria clínica, seu serviço de radiologia médica.

Hesitações e medo não faltaram. A incerteza com ele andava de mãos dadas. Angústia. Tudo isso junto parecia testar a capacidade de resistência daquele careca, àquela época um pouco franzino, consequência dos dias de amargura.

Empréstimos dos amigos, palavras de incentivo, apego na esperança. Eu, um moleque de pouquíssima idade, não compreendia o que acontecia à minha volta.

Não sei exatamente quando meus pais decidiram que daria certo. Resolveram, em uma sociedade não apenas profissional, mas conjugal, afetiva e de muito companheirismo, alugar uma bela casa na esquina das ruas Barão de Miracema e Alvarenga Filho, na cidade de Campos dos Goytacazes - RJ, e lá iniciaram uma dura jornada rumo a inauguração da Rad-Med Diagnóstico por Imagem Ltda.

Ainda me lembro do meu pai esboçando em brancas folhas o que se tornaria a logomarca da clínica. Tudo assim, feito por eles próprios, fruto de idéias que se esforçavam para ter e com ajuda de poucas, mas inesquecíveis, pessoas.

As dívidas eram fartas. Chegavam os equipamentos e, com muito pouco recurso, mas repletos de vontade e perseverança, inauguravam a clínica que hoje - não posso deixar que a modéstia me cale - dá exemplo e serve de referência naquilo que se propõe a fazer.

Naquela época meu velho tivera de fazer uma escolha. Ou trabalhava com unhas e dentes - e muito pouco descanso - para fazer um sonho se tornar realidade ou se rendia às armadilhas da vida. Para que fosse possível alcançar seus objetivos, meus pais pouco podiam estar em casa. Se alternavam no escasso descanso. Durante a noite funcionava como uma espécie de revezamento de plantão. Não era raro um dos meus pais chegar em casa, cochilar pouco tempo, colocar alguma comida em um recipiente e partir rumo à clinica para alternar com o outro.

Como já disse, eu não entendia nada. Como uma criança egoísta, só sabia reclamar da ausência dos meus pais. Fazia birra e queria minha mãe para me ajudar nos estudos e lições de casa. Muitas vezes ela acabava vindo, reservando-me um tempo de que não dispunha.

Hoje, anos e anos após tudo isso ter acontecido, vejo e me recordo do olhar do meu pai ao me fitar e se dizer arrependido de não poder ter estado ao meu lado em período tão importante da minha infância.

É aí, meus queridos leitores, que erra o meu velho. Ele poderia ter escolhido ficar mais perto, passar mais tempo em casa, me ensinar a andar de bicicleta, tentar fazer com que eu aprendesse a jogar futebol, soltar pipa comigo, brincar de carrinho ou apenas passar mais tempo perto do seu filho.

Tudo isso parece impagável e ainda hoje percebo a dor no coração do meu velho por pouco ter tido tempo para fazer esse tipo de coisa. Mas e daí?

Se meu pai estivesse em casa, talvez eu tivesse feito com ele feito tudo isso que mencionei e mais um pouco. Mas, como até hoje tem o dom de fazer, na sua ausência me deu lições essenciais para o resto da minha vida.

Quando hoje olho adiante e vejo a longa estrada, com caminhos tortuosos, amargos e difíceis que me esperam, lembro dos ensinamentos que meu pai me deu sem saber que assim fazia.

Foi em casa, meus queridos leitores, e não nos bancos acadêmicos, que aprendi o que é ser ético. Nas idas e vindas dos meus pais, sempre acompanhadas de um breve mas infindo afago, aprendi o que há de mais valioso no ser humano. Muito jovem tive, como poucos, o exemplo de ética, perseverança, carinho, esperança, honestidade, respeito e, acima de tudo, amor.

Sem saber meus queridos pais me ensinaram que o amor pode ser demonstrado até mesmo na ausência e que não há sensação de vitória melhor que aquela que se sabe ter sido conquistada por meio da honestidade, da ética, da transparência e do respeito.

Nessa época em que muito pouco os tive em casa, fui afortunado por passar a desfrutar da companhia de um tio que acabara de chegar daqui, da minha bela cidade - por eleição - de São Sebastião do Rio de Janeiro. Era o início de um curto, mas infinito, período de aprendizado e admiração eternos desfrutados ao lado do Juju. Mas essa é uma outra história, muito rica em detalhes, que lhes conto no meu próximo texto.

Agora vejam só, comecei a escrever essas linhas iniciais para lhes contar sobre o Juju, e o foco foi totalmente mudado. Deixei que assim ficasse, sem alterar o início do texto original. Percebi - e queria que vocês também percebessem - que a admiração e o amor que sinto pelo meu pai e pela minha maezinha superam qualquer planejamento e fazem com que eles sejam sempre revelados - mesmo que nas entrelinhas - em qualquer atitude nobre que eu me proponha a realizar.

Desculpem-me pela nostalgia, mas há momentos em que se faz necessário tornar público os sentimentos que fazem girar a roda da vida.

Então, até a próxima, quando lhes contarei sobre o cômico, exemplar e inusitado Juju, o baiano tipo baixo da profanação.
3 Responses
  1. Unknown Says:

    Resume, querido. Hahaha

    Mas foi bonitinho isso. Só fiquei imaginando o pequeno Quércia, sozinho em casa, olhando praquele bar, um degradê de cores, aromas e emoções... Foi aí que tudo começou, né, não?

    Ostentou, Orestes!


  2. Unknown Says:

    Longo e bonito discurso, como sempre! Vou continuar lendo os seus textos e fazendo comentários quando for pertinente.

    Um grande abraço,
    Fabricio
    (kechinho, pros amigos)
    100% Borracha!


  3. Seja muito bem-vindo à TRIBUNA Kexinho.
    Pra mim é uma honra tê-lo entre meus leitores, o que põe sobre meus ombros uma responsabilidade ainda maior no que for publicado.
    Obrigado pelo comentário. Faça daqui um pedacinho da sua casa.
    Abração.